Foto: Tarsila do Amaral

Infância e cinema

Conceição Seixas  Eu queria que você nos falasse um pouco da relação entre adultos e crianças, porque me pareceu que, nos seus filmes, não são relações de tutela, de cuidados, essas relações mais convencionais entre adultos e crianças.  

Sandra Kogut  No caso do Mutum, há claramente o mundo dos adultos e o mundo das crianças. Há dois mundos, mas só percebemos o mundo dos adultos pelo olhar da criança. Tanto que há várias coisas que não entendemos bem. Por exemplo, será que ele (Thiago) é filho do tio, será que a mãe está tendo um caso com o tio? Temos pedaços de informação e só sabemos o que sabe esse menino, que é quase nada. Ele sente, mas também não sabe direito o que está acontecendo. Então, estamos nesse filme com ele, estamos colados no Thiago, vivemos tudo o que está acontecendo ali pelos olhos dele. 

No caso de Campo Grande, é diferente, porque uma coisa que eu achava importante para contar aquela história é que não tivesse apenas um protagonista, um ponto de vista. Como eu estava interessada na complexidade daquelas relações, achava que tinha que entender o lado de todo mundo. Então o filme começa realmente com as crianças, mas aos poucos vai abraçando outros personagens: aquela mulher com quem no início se antipatiza, a Regina, aos poucos se vai entendê-la melhor, entender a filha (Lila), até entender o lado da mãe das crianças. É um filme que exige do espectador, pois não simplifica a história em um protagonista, mas vai mudando de lugar, fugindo da regra de roteiros cinematográficos. É arriscado, mas eu achei importante para contar essa história e assim apresentar bem essa diferença entre o mundo das crianças e o dos adultos. No Campo Grande acontece uma coisa bem distinta, pois o menino e a mulher (os personagens Igor e Regina) são muito diferentes: ele é menino, ela, mulher; ele criança, ela, adulta; ele não tem dinheiro, ela tem. Só que, à medida que a história vai andando, eles vão vendo – e o espectador também – que estão iguais na vida, vivendo a mesma situação, e assim cria-se um laço entre eles.

Conceição Seixas  Ela (Regina) também, de certa forma, está vivendo um abandono, uma separação de vínculos com a filha. 

Sandra Kogut  Ambos estão vivendo um momento de incertezas, de mudanças, uma coisa meio brutal. Aqueles momentos em que não somos mais o que éramos, mas ainda não viramos outra coisa.

Conceição Seixas  É tão marcante aquela cena quando, diante de tanta dificuldade, sem saber o que fazer com aquelas crianças (Igor e Rayane), naquela tensão, a filha (Lila) diz para a mãe (Regina): “Você não sabe cuidar de ninguém”.

Sandra Kogut  Exatamente! Ela (Regina) resolve ir a Campo Grande, o bairro de origem das crianças. Quando ela toma aquela atitude, é uma chamada, as crianças acabam trazendo à tona as questões da família.

Conceição Seixas  Eu compreendi e estou de acordo, quando você diz que não necessariamente o recorte de classes é um marcador de diferença significativo para as relações interpessoais. Na questão do cuidado, na relação adulto-crianças, o compromisso geracional dos adultos com as crianças, na nossa cultura, não é reproduzido em todos os contextos, pois não são todas as mães que precisam dar os seus filhos, o que não significa dizer que não se abandonem os filhos mesmo estando em classes abastadas, no sentido emocional. Mas na situação do filme há um recorte de classe. Então, eu queria que você nos falasse um pouco sobre como você vê estas relações convencionais de cuidado, a própria tutela entre adultos e crianças. Nos seus filmes isto aparece um pouco diferente, pois você mostra adultos que precisam dar os filhos, dadas as contingências do momento.  

Sandra Kogut  Pessoalmente, não consigo imaginar isto. Se ficar alguns dias longe dos meus filhos, eu sofro, não consigo ficar longe deles. Mas não posso julgar essas mães que de alguma forma tiveram que se separar dos seus filhos, pois nessas histórias existem muitas camadas, e ali também tem um gesto de amor. A mãe do filme Mutum sofreu muito pra dar o filho. Ela acha que ele vai morar na cidade, que vai ter óculos, que a vida dele vai ser melhor. Ela mente para ajudá-lo a encarar melhor a situação. Ela diz “Um dia todo mundo se encontra, no fim do ano a gente vai também”, e aquilo é um gesto de amor. No caso de Campo Grande, é mais complicado, a mãe é muito nova, já tem dois filhos e está grávida, perde a própria mãe que era um porto seguro, então o que ela vai fazer com as crianças? Ela está numa situação de desespero, mas ela não rejeita os filhos. Com o pouco de opções que tem, ela está tentando dar alguma coisa para eles. Isso eu acho tão impressionante, uma situação tão rica do ponto de vista humano, social, emocional! É o que me faz ter vontade de olhar pra ela, não para julgar, mas para entender os sentimentos. 

Conceição Seixas  – Os personagens crianças, ao mesmo tempo que têm uma relação difícil com alguns adultos, constroem uma relação de cumplicidade entre eles. Felipe4 e Thiago, Igor e Rayane fazem promessas uns para os outros, se fortalecem juntos, contam um com o outro. Eu gostaria que você comentasse essas relações entre as crianças.

Sandra Kogut  A fratria é uma relação que não tem igual em termos de conexões, de intimidades, tudo tão absoluto para a vida toda. São relações bem diferentes até de um amigo, de um parente adulto. É alguém que está no mesmo lugar que você, que dividiu com você as coisas mais profundas da vida. E isso é para sempre. A relação deles é linda por isto. Quando Igor deixa a Rayane no abrigo e vai à luta, ele está sempre pensando nela, ele fez a promessa de achar a mãe, está imbuído disto. Quando eu estava trabalhando com os atores, gostava muito de falar além do texto, o subtexto, não do que estão falando, mas do que estão pensando… Muitas vezes existe uma distância grande entre o que estamos falando e o que estamos pensando. Isso me interessa muito.

Conceição Seixas – É uma relação entre pares…

Sandra Kogut  Eles estão colados, os irmãos têm uma coisa que vai além da amizade, uma união muito profunda.

Conceição Seixas  Essa relação entre pares, das crianças entre si, isto se contrapõe à relação das crianças com os adultos.

Sandra Kogut  As crianças estão no mundo delas, e entre elas e o mundo dos adultos há um muro, não tem jeito.

Conceição Seixas – Você tem outros projetos de produzir filmes sobre infância?

Sandra Kogut  Neste momento, estou desenvolvendo alguns projetos, mas outras coisas. Há até um filme em que estou trabalhando, que é adaptado de um conto e se passa na Cisjordânia, e envolve a venda de um bebê. Ou seja, não tem criança, mas tem a relação da maternidade. Então eu diria que esse projeto ainda tem alguma relação com a temática da infância. 

Conceição Seixas  Uma última questão, teve alguma situação da vida real que te inspirou nesses filmes?

Sandra Kogut  Sempre tem, mas na verdade a gente nunca sabe o que exatamente vai nos inspirar. Os filmes são trabalhos árduos, então é preciso ficar obcecado por eles para encarar todos os desafios da produção. Quando olho retrospectivamente, sempre encontro uma lógica, mas não necessariamente algo que me tocou muito vai virar um filme. 

Conceição Seixas  Eu te agradeço muito pela entrevista. Você quer comentar algo mais, fique à vontade. Eu quero dizer que me emocionei muito com os seus filmes, com a cena dos óculos (o personagem Thiago, que já havia sido diagnosticado com miopia, ao deixar sua família para ir morar com o médico – para quem sua mãe o deu –, pede os óculos do médico para ver o lugar pela última vez). Eu confesso que chorei mesmo neste momento do filme.

Sandra Kogut  A conversa foi ótima, eu agradeço a oportunidade. Estou à disposição para outras questões. Realmente são histórias emocionantes, eu chorei também quando li o livro. 

Palavras-chave: infância, cinema brasileiro, representações da infância, Mutum, Campo Grande

4- Nome do ator e do personagem criança que ele interpreta no filme Mutum.

 

Sandra Kogut sandra.kogut@gmail.com
Cineasta, documentarista e roteirista. Dirigiu vídeos, videoclipes, documentários, curtas e longas-metragens, entre os quais têm destaque Um passaporte húngaro (2001), Mutum (2007) e Campo Grande (2016).
Conceição Seixas conceicaofseixas@gmail.com
Doutora em Psicologia, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisadora do Nipiac – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.