Entrevista de Adriana Molas com Luis Eduardo Morás.
Adriana Molas: Qual é a sua formação e o seu vínculo com os temas da infância e da adolescência?
Luis Eduardo Morás: Em 1999 terminei o doutorado no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) sob a estimulante orientação de Luiz Eduardo Soares. A minha área de especialização está vinculada principalmente aos temas da violência, dos adolescentes em conflito com a lei, e à segurança cidadã. Fui assessor do Ministério do Interior durante o primeiro governo da Frente Ampla, assim como de vários organismos internacionais, como UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) ePNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Atualmente, eu sou diretor do Instituto de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade da República (Uruguai). Durante o ano de 2014, fui designado para integrar uma comissão da Universidade da República para promover o pronunciamento público da instituição sobre o plebiscito para reduzir a maioridade penal e também nesse ano colaborei na elaboração do Relatório Alternativo apresentado pelo Comitê dos Direitos da Criança (Uruguai) ante o Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas.
Adriana Molas: Como você vê a situação atual da adolescência no Uruguai, em relação ao problema da segurança cidadã e do conflito com a lei penal?
Luis Eduardo Morás: No que diz respeito à situação da infância e da adolescência, o nosso país tem um sério problema, que é a histórica dívida social com este setor da sociedade. Apesar do ciclo favorável de crescimento econômico que se mantém há uma década, as crianças, os adolescentes e os jovens são os que apresentam maiores níveis de desigualdade na sociedade. Embora, em termos globais, a pobreza e a indigência tenham sido notoriamente reduzidas, em termos comparativos continua existindo uma relação de sete a oito vezes mais crianças pobres do que adultos; a taxa de desemprego para os menores de 24 anos é três vezes superior ao total existente na nossa sociedade e a informalidade do emprego, ou seja, a ausência de proteções sociais, empregos de baixa qualidade e baixos salários, se duplica se comparamos os jovens com os adultos. Sem dúvida, pode-se dizer que as crianças e os jovens não só são os primeiros afetados nas épocas de crise econômica, como também são os últimos a se beneficiarem dos ciclos de auge, já que não conseguem ser plenamente atingidos pelo crescente bem-estar.
A esta realidade estrutural, soma-se o fato de que a sociedade uruguaia é uma sociedade envelhecida; os adolescentes e os jovens tendem a ser percebidos como um problema e são visualizados como os principais culpados dos males sociais existentes. Particularmente, se são pobres e vivem em determinados bairros que os meios de comunicação e a sociedade percebem como zonas perigosas, passam-se a somar às carências materiais os estigmas da constante suspeita de eles reproduzirem, junto com as suas misérias cotidianas, os comportamentos desviados e a multiplicação da delinquência.
Esta realidade se reflete no funcionamento da justiça penal adolescente: a maior parte dos casos que chegam é de delitos contra a propriedade, provém dos setores sociais mais pobres e a medida judicial mais aplicada é a privação de liberdade, panorama geral que não variou substancialmente nas últimas décadas.
Apesar da aprovação do Código da Criança e do Adolescente em 2004, que promove a proteção integral como paradigma e reúne os fundamentos da Convenção dos Direitos da Criança, continua dominando, na maioria dos operadores do sistema e nas práticas cotidianas, a velha doutrina da situação irregular. Isso levou a uma crise do sistema de privação de liberdade, que reitera a paisagem cíclica de permanente crise das instituições de reforma que não cumprem a sua função básica e essencial: devolver à sociedade um adolescente em melhores condições que aquelas que o levaram a entrar na instituição. A violência estrutural imperante e a contínua violação de mínimos direitos não parece ser parte de uma patologia conjuntural e sim da própria anatomia de um sistema de privação de liberdade, que assiste a um contínuo crescimento que supera as possibilidades destas instituições. Também contribuiu para esta situação o fato de que, durante o governo atual, foram endurecidas as penas e tipificadas novas infrações para adolescentes, o que gerou sérias carências de base, mas, fundamentalmente, a impossibilidade de sustentar o crescimento da população privada de liberdade com um quadro de técnicos e de educadores capacitados para a tarefa. Por sua vez, estas modificações legais que determinaram maior severidade nas normas penais, são claramente contrárias ao espírito da normativa internacional e inclusive do próprio Código da Criança e do Adolescente, que estabeleceu a privação de liberdade como uma medida de último recurso.
Adriana Molas: Houve mudanças importantes no perfil dos adolescentes em conflito com a lei que chegam à Justiça?
Luis Eduardo Morás: Uma análise rápida das estatísticas judiciais disponíveis desmente com sólida evidência uma série de mitos existentes na opinião pública. Em particular, aqueles de que os jovens são os principais culpados pela situação de insegurança e que existe uma mudança radical no tipo de violência desenvolvida ou nas motivações dos adolescentes infratores.
Ao contrário do que a população acredita, a participação dos jovens na prática de delitos é baixa em relação à dos adultos e nos últimos 20 anos nunca superou 10% do total de delitos denunciados. Eles também não são os principais protagonistas dos delitos de mais impacto contra a pessoa, como o homicídio e a violação; a esmagadora maioria dos casos que chegam à Justiça juvenil é de delitos contra a propriedade (furtos e roubos).
Outro mito que os meios de comunicação reproduzem e a sociedade assume acriticamente tem a ver com o perfil dos adolescentes privados de liberdade e a sua relação com o consumo de drogas e o mundo do trabalho. De acordo com um recente diagnóstico realizado na Faculdade de Direito, baseado em um censo do total de adolescentes privados de liberdade no ano de 2013, aqueles que apresentavam um consumo problemático de drogas eram uma minoria. Por outro lado, a maior parte deles tinha antecedentes de trabalho, claro que em trabalhos precários sem proteções formais. A partir daí, é possível discutir, com a evidência que os dados fornecem, as habituais ideias hegemônicas de que estes jovens rechaçam profundamente o mundo dos estudos ou do trabalho, assim como a existência de subculturas delitivas consolidadas, que promovem uma inevitável escala de valores diferenciada do resto da sociedade, tornando praticamente inevitável assumir outra vida que não seja a da delinquência. O diagnóstico sobre a infração adolescente que realizamos nos aproximou mais das tentativas de explicação que dão ênfase à falta de oportunidades educativas ou de trabalho, em uma linha próxima ao que David Matza chamou “deriva” e que Gabriel Kessler desenvolve nos seus trabalhos com o caso argentino e que aborda como passagens intermitentes entre o mundo do trabalho precário e as ocasionais atividades delitivas.