Adriana Molas: No passado mês de outubro foi realizado no Uruguai um plebiscito que promovia um projeto de lei de reforma constitucional para reduzir a maioridade penal adolescente. Você acha que este reducionismo no modo de compreender os problemas sociais, que você mencionou, pode ter incidido na realização do plebiscito?
Luis Eduardo Morás: É certo que para chegar a se fazer um plebiscito sobre uma reforma constitucional intervieram múltiplos fatores políticos. Mas, sem dúvida, esta configuração de ideias, nas quais se apresenta o país vivendo uma situação de violência e desordem social com características desconhecidas no passado e cujos exclusivos protagonistas são os adolescentes pobres, que devem ser penalizados como adultos, teve um papel fundamental. De fato, desde 2009 todas as pesquisam revelam que a segurança pública é a principal preocupação dos cidadãos.
Adriana Molas: Que considerações devemos tecer sobre a realização do plebiscito?
Luis Eduardo Morás: Em primeiro lugar, deve-se destacar que fazer um plebiscito sobre uma reforma constitucional depois de se obter a quantidade de assinaturas necessárias para habilitar a consulta era uma iniciativa inédita no país. E também representa uma questão original dentro da ampla gama de propostas do populismo penal que proliferam na região. Há muitos projetos de mudanças, em nível legislativo, para o endurecimento das normas penais, tanto no Brasil quanto em praticamente todo o continente. Mas convocar diretamente a população para se pronunciar sobre o assunto que gera maior preocupação, como a insegurança, e que promove medidas repressivas sobre aqueles que são responsabilizados por todos os males contemporâneos, representava um nível qualitativamente diferente. As consequências da reforma seriam muito graves no plano legal, mas também, e fundamentalmente, no campo simbólico, uma vez que se ela tivesse sido aprovada teria modificado a Constituição da República, que supostamente deve representar os valores mais gerais e superiores que unem a nação.
Em segundo lugar, a iniciativa surgiu dos grupos políticos mais conservadores, mas, de forma inteligente, transcendeu este grupo ao se configurar uma “Comissão para Viver em Paz”, cuja face mais visível e midiática são as próprias vítimas dos delitos. Em suma, era uma proposta na qual confluíam a principal preocupação dos cidadãos – a insegurança – e a natural sensibilidade coletiva que a dor das vítimas dos delitos desperta e que propunha a solução mais evidente imposta pelo senso comum criminológico diante do problema da violência: culpabilizar e penalizar os adolescentes mais pobres. Não era fácil enfrentar uma inciativa com essas características, que, além disso, contava com uma amplíssima recepção nos meios de comunicação.
Adriana Molas: Que forças ou interesses incidiram nesta discussão?
Luis Eduardo Morás: Desde o primeiro momento, nós, das organizações sociais que trabalham em contato direto com crianças, adolescentes e universitários, entendemos que o projeto transcendia a mera “questão penal adolescente”. Desde a volta da democracia, em 1985, essa questão tinha gerado umas 20 propostas de reforma em nível legislativo, que não contavam com a maioria parlamentar para serem aprovadas. Sem dúvida, a dimensão das forças políticas, que conseguiram rapidamente obter 10% de assinaturas dos eleitores para convocar a consulta popular, os apoios midiáticos e financeiros da campanha, transcendia o assunto mais imediato e se transformava em um plebiscito sobre uma agenda mais ampla de direitos trabalhosamente conquistados nos últimos anos. Em última instância, o plebiscito traduzia uma cosmovisão conservadora sobre a origem dos males contemporâneos. Apesar de, no plano mais imediato, os principais culpados serem os adolescentes pobres, as mudanças legais recentemente realizadas, como as leis sobre casamento igualitário, comercialização da cannabis, interrupção da gravidez etc., não estavam desvinculadas do estado de desordem generalizada e crescente violência.
A partir disso, pode-se dizer que o plebiscito configurava uma batalha cultural, ao promover uma visão sobre a origem dos problemas da violência e dos diversos mal-estares existentes, atribuindo responsabilidades específicas e se alimentando da extensão do medo para promover como única resposta possível o aprofundamento da punitividade.
Adriana Molas: Tudo parece indicar que a tarefa de enfrentar esta proposta constituiu um esforço importante de múltiplos atores e que o mais previsível era o triunfo da postura de reduzir a maioridade penal.
Luis Eduardo Morás: Realmente, por volta do ano de 2011, as pesquisas de opinião pública mostravam que 70% da população concordava com a redução da idade de imputabilidade penal, aprovando a reforma constitucional. Nesse momento, não era fácil nem previsível ter sucesso em reverter o que parecia ser a culminação histórica de uma jogada de mestre dos setores políticos mais conservadores, principalmente se consideramos que o plebiscito era simultâneo às eleições presidenciais de novembro de 2014. Isso colocava o tema da insegurança como uma poderosa bandeira de confronto eleitoral e deixava a esquerda ante a incômoda perspectiva de ter que se opor ao projeto, abraçando uma causa previsivelmente perdida.
A primeira reação frente ao horizonte escuro veio das organizações que trabalham em contato direto com crianças e adolescentes e conhecem as múltiplas vulnerabilidades que os afetam e as contínuas violações aos seus direitos mais elementares. Estas organizações e militantes que, depois de anos, já estavam calejados diante das habituais críticas midiáticas e de setores políticos de serem “cúmplices dos delinquentes”, junto com os universitários, conseguiram dar forma a uma Comissão pelo “Não à redução”, que obteve a rápida adesão de militantes de associações, sindicatos, artistas e juventudes de partidos políticos. A heterogeneidade dos setores que a compunham e a forte representação de jovens começaram a reverter o pessimismo original, contrapondo ao discurso político hegemônico da demagogia “mão de ferro” as evidências do conhecimento especialista das mais variadas disciplinas. Também conseguiram mostrar a realidade dos adolescentes e algumas experiências de trabalho concreto de sucesso que as organizações comunitárias realizavam. As múltiplas jornadas e debates que se organizaram em nível local e dos bairros, com a presença de educadores, especialistas e técnicos, foram extremamente efetivas para expor a ausência de sustentação técnica de uma reforma que promovia uma estigmatização dos mais vulneráveis e a expansão do encarceramento como suposta solução para o problema da insegurança.
Adriana Molas: No Brasil, nos últimos anos, também foram apresentados vários projetos para reduzir a idade de imputabilidade penal. A experiência uruguaia pode contribuir com alguma reflexão para o debate local?
Luis Eduardo Morás: Se olharmos os fundamentos expostos para reduzir a maioridade penal e considerarmos a aliança de forças que impulsionam a mudança, chegaremos à conclusão de que não existem praticamente diferenças e que esta é uma onda de pensamento que percorre o continente. Sempre acompanho com muita atenção os debates sobre as políticas de segurança no Brasil, porque têm uma grande influência no Uruguai e até por motivos familiares realmente chama a atenção a coincidência de argumentos entre países que, em muitos aspectos, são tão diferentes.
Uma breve revisão da mitologia comum sobre o assunto e que não tem nenhuma evidência empírica: se afirma que os adolescentes são os culpados da maior parte dos delitos; que se vive uma situação de alarmante crescimento da violência como nunca existiu antes; que as leis são inadequadas ou obsoletas, dadas as mudanças existentes nos delitos ou nos próprios adolescentes; que os jovens de hoje já não são como os de antes; que a vertigem da tecnologia e as possibilidades que os meios de comunicação oferecem favorecem um amadurecimento precoce e como consequência eles devem ser responsabilizados como adultos desde os 16 anos; que reduzir a maioridade penal é o caminho que estão fazendo todos os países; entre outras falácias que, reitero, não se sustentam em nenhuma evidência.
Mais sutilmente e em um plano simbólico e cultural mais relevante, as forças conservadoras que impulsionam estas reformas se apoiam em algumas ideias que também são comuns em ambas as realidades. Algumas delas podem ser sintetizadas na frase “os problemas de segurança não são de direita nem de esquerda, afetam a todos os cidadãos por igual”. Esta ideia constrói uma hegemonia em torno da repressão como única e inevitável suposta solução dos problemas; ideia que geralmente é reforçada pela afirmação de que esta perspectiva é compartilhada por “todos os cidadãos honestos”. Por esta via, a demanda por mais polícia, leis mais duras e maior quantidade de presos cada dia mais jovens deixa de ser patrimônio de uma visão conservadora do mundo e se transforma em um senso comum coletivo, que é difícil de rebater. Embora o aumento da punitividade, pelo menos no Uruguai, venha sendo apresentado há uns 20 anos sem resultados positivos, as mensagens conseguem consolidar uma hegemonia que coloca os que tentam opor-se a ela em posição de serem “cúmplices dos bandidos”. Assim, defender as garantias do estado de direito ou denunciar a constante violação de direitos humanos elementares dos presos passam a ser atos de extrema ingenuidade ou antiquado romantismo e, inclusive, representam uma ofensa à dor que experimentam as vítimas de delitos. Em última instância, não é difícil deduzir que as reformas legais propostas para penalizar os adolescentes promovem também um modelo de sociedade e traduzem um projeto político definido. Frente a esta realidade e à dimensão do desafio que supõem, talvez o melhor legado que se pode extrair da experiência uruguaia seja o fato de que a derrota e o consequente retrocesso no campo dos direitos das crianças e dos adolescentes mais vulneráveis não são inevitáveis.
Adriana Molas: Agradecemos a sua disposição em compartilhar, de forma profunda e franca, uma análise complexa do problema da adolescência em conflito com a lei penal. Esta análise nos permite compreender que a construção do adolescente infrator é resultante de uma multiplicidade de forças sociais, políticas, econômicas, que devem ser levadas em consideração na concepção, implementação e avaliação de políticas públicas específicas e dispositivos de intervenção.
Palavras chave: maioridade penal, adolescência, plebiscito, Uruguai.