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Agravamento das vulnerabilidades infanto-juvenis: uma análise sociopolítica do sofrimento psíquico durante a pandemia de COVID-19

Luciana Gageiro Coutinho
Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação/Departamento de Fundamentos Pedagógicos, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-5535-5931

Edson Guimarães Saggese
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psiquiatria, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-3775-9566

Ivone Evangelista Cabral
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1522-9516

DOI:  https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.46041

Desde dezembro de 2019, o mundo tem convivido com a pandemia de COVID-19, que se iniciou na cidade de Wuhan, na China, uma doença altamente letal cujo aprendizado vem sendo construído no curso de sua história natural. Globalmente, o painel do Coronavirus Resource Center, da Johns Hopkins University (2021), registrou, em 27 de agosto de 2020, um total de 214.718.823 de pessoas que se contaminaram pelo vírus. Até a data, a doença fá havia causado a morte de 4.476.525, uma taxa de óbito de 2,08% por uma única doença. Nesse contexto, o Brasil ocupa a quinta posição no ranking de número de casos (20.676.561) e mortes (577.565). Análises da expressão da pandemia no país têm atribuído ao negacionismo da ciência pelo governo federal a ausência de uma coordenação nacional na formulação de políticas intersetoriais articuladas com estados e municípios. Além disso, o uso ostensivo das redes sociais para compartilhar desinformações sobre a doença, indicação de tratamentos sem eficácia científica comprovada e vacinação em ritmo lento se somam às iniquidades socioeconômicas já existentes no país e agravadas pela pandemia (FONSECA et al., 2021; ROCHA et al., 2021; DOMINGUES, 2021).

Embora o Sistema Único de Saúde (SUS) reúna condições para o enfrentamento da crise sanitária, por ser descentralizado, universal e gratuito, houve um agravamento na sua capacidade de resposta em razão do desfinanciamento do sistema com o congelamento de investimento em saúde por 20 anos e das sucessivas crises econômicas, sociais e políticas do país, especialmente a partir de 2015 (BRAVO; PELAEZ, 2020). Por um lado, as medidas sanitárias de quarentena (isolamento, afastamento social, uso de máscaras, higienização das mãos e superfícies, cancelamento de eventos de massas, restrição às reuniões sociais e familiares) são medidas que reduzem a circulação do vírus. Por outro, sem a proteção do Estado, pessoas que vivem em contextos de vulnerabilidades apresentam respostas diferentes à mesma crise sanitária. Dados de morbimortalidade registram que, além dos idosos, a pandemia tem causado maior impacto sobre indivíduos que vivem em contexto de pobreza, de raça/etnia negra e indígena, mulheres grávidas e crianças (SOUZA; SANTOS; SILVA, 2021). Viver em ambientes com pouco acesso à água tratada, com pouca ventilação (como as favelas, por exemplo) e maiores chances de aglomeração contribuem para disseminação descontrolada do novo coronavírus (FREITAS; SILVA; CIDADE, 2020).

Nesse sentido, a COVID-19 produz efeitos sobre as condições de existência (materiais e sociais), e não somente sobre a saúde. O longo tempo de aplicação da quarentena e as incertezas sobre o futuro têm produzido efeitos sobre a saúde mental das pessoas, exigindo medidas de enfrentamento de uma nova realidade durante e após a COVID-19. Particularmente na vida das crianças, a pandemia provocou o afastamento da escola, maior exposição a violências intrafamiliares e autoinfligidas, mais agravos à saúde e reduziu o atendimento nos serviços da atenção primária à saúde (PETROWSKI et al., 2021; CABRAL et al., 2021; BROOKS et al., 2020).

A humanidade vive o desafio de assegurar a continuidade de sua existência em um contexto de crise sanitária que traz consigo as sequelas da doença, transtornos mentais, desemprego, fome, miséria e maior exclusão de grupos sociais vulneráveis. Tudo isso afeta sobremaneira o modo de existir de crianças e adolescentes na sociedade contemporânea.

O marcador social e epidemiológico relativo à vulnerabilidade tem seu surgimento no campo da saúde coletiva como modelo explicativo articulado à noção de risco de exposição ao adoecimento, mais especificamente durante a epidemia do HIV no início dos anos 2000 (AYRES et al., 2003; MUÑOZ SÁNCHEZ; BERTOLOZZI, 2007). Seja para configurar os chamados grupos de risco, seja para mapear situações de risco, a noção rapidamente se difundiu para outros estudos da saúde, bem como das ciências humanas e sociais. À vulnerabilidade advinda da crise sanitária soma-se a discussão sobre vulnerabilidades sociais de diversas ordens para lançar luz sobre a interconexão dos processos sociais, culturais e individuais que conformam a suscetibilidade dos indivíduos a um determinado evento. Ademais, proporciona uma reflexão mais abrangente sobre os processos saúde-doença (AYRES et al., 2003) para além do paradigma biomédico. Dessa maneira, o seu potencial analítico e prático favorece o estabelecimento de um conhecimento interdisciplinar no campo da saúde coletiva e estimula sua aplicabilidade na análise de diferentes objetos de interesse (RUOTTI; MASSA; PERES, 2011).

Nas ciências sociais, já em meados dos anos 1980, podemos destacar o uso da noção de vulnerabilidade por meio das contribuições de Castel (1997, p. 19) ao interpretar o modo de existência de um grupo de indivíduos “rejeitados do circuito comum das relações sociais”, como, por exemplo, grupos de “jovens à deriva em subúrbios deserdados”. No contexto das sociedades modernas, as condições sociais e políticas adversas predominam em razão da “conjunção da precarização do trabalho com a fragilidade dos suportes relacionais” (CASTEL, 1997, p. 12). O autor centra sua argumentação nas condições sociais da vulnerabilidade à desfiliação, marcando a amplitude do duplo processo de desligamento: ausência de trabalho e isolamento relacional. O conceito de desfiliação apresentado pelo autor, em oposição ao conceito de exclusão social, pretende enfatizar a tendência ao enfraquecimento ou a ruptura dos laços sociais que ligam o indivíduo à sociedade. Já a vulnerabilidade representaria uma espécie de indicador da exposição de um indivíduo à ocorrência desse risco. Nesse sentido, para Castel (1997), a degradação dos vínculos relacionais contribui para ampliar os riscos de queda na vulnerabilidade e, posteriormente, na desfiliação.

No Brasil, a pandemia da COVID-19 amplificou o contexto de agravo às condições de existência de crianças e adolescentes, tornando-os mais vulneráveis ao sofrimento psíquico e à violência. Portanto, cabe questionar: como o agravamento das vulnerabilidades se entrelaçam com as dimensões sociopolíticas do sofrimento psíquico da infância e adolescência? O encontro dos conceitos vulnerabilidade, adotado no campo da saúde coletiva, com o de desfiliação, das ciências sociais, e a noção de desamparo, da Psicanálise, pode nos ajudar a compreender a repercussão midiática da violência contra a criança e o adolescente durante o período de pandemia. A experiência de escuta da violência autoinfligida em um ambulatório público para crianças e adolescentes com transtornos mentais complementa nossa observação sobre as consequências do aumento de vulnerabilidade nesses períodos etários. Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi refletir sobre os agravamentos das vulnerabilidades com as dimensões sociopolíticas do sofrimento psíquico de crianças, adolescentes e jovens durante a pandemia da COVID-19.

Aspectos da vulnerabilidade de crianças e jovens agravados durante a pandemia

Pensamos que as questões relativas à vulnerabilidade decorrente da degradação dos vínculos, agravadas com o avanço desenfreado do neoliberalismo, tal como trabalhou Castel (1997), são bastantes pertinentes à reflexão sobre a questão social brasileira, como, de fato, tem sido profícua em estudos e pesquisas sobre diversas dimensões da vida social no Brasil. Ademais, representam entraves para os mecanismos de proteção à criança e aos adolescentes durante a pandemia, por exemplo, as limitações de atendimento nas unidades básicas de saúde e a interrupção da frequência escolar, haja vista que essas ações influíram sobre a redução no número de notificação de violências (CABRAL et al., 2021; BRADBURY-JONES; ISHAM, 2020).

Reflexões sobre os riscos sociais próprios à Modernidade Reflexiva, por Le Breton (2000), Giddens (2002) e Sennett (2005), nos advertem que, nesse contexto, o controle dos riscos passa cada vez mais por estratégias individuais e/ou privadas, já que, socialmente, há uma maior isenção em relação à responsabilidade coletiva de gestão dos riscos. Enfatizando particularmente a situação dos jovens nesse contexto, como ressalta Le Breton (2000), a Modernidade provoca descontinuidades de sentido e confusão nas referências socialmente instituídas, conduzindo cada indivíduo à necessidade de se autorreferenciar, ou seja, diante da vacilação de sentidos compartilhados e modos de inserção social, a juventude é deixada à deriva. Assim, os jovens são submetidos a uma maior vulnerabilidade social com o árduo peso de uma maior responsabilização individual em detrimento de estratégias coletivas como suportes no atravessamento dos dilemas desse momento. Para esse autor, as condutas de risco muitas vezes são buscadas como modos emblemáticos de simbolizar e legitimar a entrada na vida adulta, nos moldes das ritualizações presentes nas culturas iniciáticas, como também já trabalhado anteriormente por Coutinho (2009).

A respeito do contexto brasileiro, é visível, a partir da década de 1980, com o aumento das taxas de mortalidade por homicídio, uma vasta produção acadêmica sobre o tema da vulnerabilidade social descrevendo as curvas de crescimento, a distribuição das mortes no território nacional, incluindo a identificação de grupos populacionais infantojuvenis com maior risco de morte por homicídio (MELLO JORGE, 1998; MINAYO, 1990). Esses estudos demonstram que as populações de regiões periféricas, especialmente os jovens, constituem o mais claro grupo de risco para vitimização fatal.

Mais recentemente, podemos somar a essas estatísticas, o alto índice de mortes por suicídios entre os jovens brasileiros, que vem aumentando gradativamente no Brasil, havendo um crescimento significativo no número de notificações de mortes por essa causa de 18,3%, em 2011, para 39,9%, em 2018 (BRASIL, 2019). O Boletim do Ministério da Saúde apresenta uma descrição do perfil epidemiológico dos casos de violência autoprovocada e óbitos por suicídio envolvendo jovens de 15 a 29 anos de idade no Brasil, no período de 2011 a 2018, tendo um crescimento entre a população de 15 a 29 anos, sendo 8,7% entre os homens e 7,3% entre as mulheres (BRASIL, 2019). O perfil geral dos casos de violência autoprovocada nessa faixa etária era de pessoas brancas, do sexo feminino, com escolaridade até o ensino médio, residentes na zona urbana. As proporções de lesões autoprovocadas com caráter repetitivo apresentaram valores importantes para ambos os sexos, mas foram maiores entre as mulheres. Já nos casos de suicídio, os perfis mais vulneráveis foram homens, com 4 a 11 anos de escolaridade, de raça negra, sendo o enforcamento o principal método utilizado.

Paralelamente, em revisão de literatura sobre o suicídio na infância, Sousa et al. (2017) relatam, a partir do Mapa da Violência, organizado pelo Ministério da Saúde no período de 2002 a 2012, que o número de suicídios entre crianças e adolescentes de 10 a 14 anos aumentou 40%. O Mapa da Violência também mostrou um aumento das taxas de suicídio na infância de 2,8% em 1980, para 4,1% em 2013, no país. Segundo os autores, diversas pesquisas têm atribuído o aumento do número de suicídios em crianças à falta de estratégias adaptativas em situações de estresse.

Tais índices associados aos recortes de classe social, gênero e raça nos permitem pensar que tanto as mortes por violência quanto aquelas decorrentes de suicídios prevalecem nos setores mais vulnerabilizados socialmente. Nesse sentido, as crianças e os jovens que mais morrem por suicídio pertencem ao mesmo grupo social daqueles que são vítimas de violência. Tal grupo, dadas as condições de desigualdade social que se apresentam no Brasil, coincide, portanto, com a população com menor acesso às escolas e aos serviços de saúde, que poderiam atuar como mecanismos de proteção e sustentação de vínculos sociais a esses meninos e meninas.

Esse cenário só se agravou com a pandemia de COVID-19 no Brasil. Ainda que não tenhamos dados mais robustos a respeito desse quadro durante os anos de 2020 e 2021, sabemos pela mídia e por algumas pesquisas já publicadas (CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE, 2021; BRASIL, 2021) do agravamento das questões de saúde mental e violências sofridas pelas crianças e jovens nesse período. Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) correspondentes ao período de janeiro a maio de 2021 registraram cerca de 35 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes. Os tipos mais comuns são a violência física (maus-tratos, agressão e insubsistência material), citada em 25,7 mil denúncias; a psicológica (insubsistência afetiva, ameaça, assédio moral e alienação parental), em 25,6 mil denúncias. Cerca de 20,8 mil denúncias possuem pais e mães como suspeitos da violação, sendo que as meninas são as mais vitimizadas (66,4%). A faixa etária de 12 a 14 anos (5,3 mil) foi a mais exposta, seguida pelas crianças de 2 a 4 anos, com 5,1 mil denúncias (BRASIL, 2021).

Em pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), 9% dos jovens entrevistados em 2021 revelaram ter realizado algum ato de autolesão e/ou ter tido pensamento suicida, enquanto 61% declararam sofrer de ansiedade. Em paralelo, 48% dos jovens entrevistados falaram também sobre a importância do atendimento psicológico especializado em jovens na saúde pública e 37% apontaram o acompanhamento psicológico nas escolas como as ações prioritárias para instituições públicas e privadas ajudarem os jovens a lidar com os efeitos da pandemia na saúde. Ao mesmo tempo, a pesquisa apontou que 43% dos jovens entrevistados em 2021 não pretendiam voltar às aulas após a pandemia (CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE, 2021). Frente a essa conjuntura, como avaliar o risco social e o risco psíquico de tal situação?

Devemos acrescentar que, do ponto de vista psicanalítico, a violência, auto ou heteroprovocada, deve ser definida não só pelas suas consequências objetivas. As circunstâncias violentas da vida produzem danos subjetivos principalmente em crianças e adolescentes que não são suficientemente protegidos das ações traumáticas. Costa (2021) traz uma esclarecedora definição de violência e de suas consequências para a vida psíquica:

Violência, a nosso ver, é toda ação traumática que conduz o psiquismo ou a desestruturar-se completamente ou a responder ao trauma através de mecanismos de defesa, análogos à economia da dor. Violenta é qualquer circunstância de vida em que o sujeito é colocado na posição de não poder obter prazer ou de só buscá-lo como defesa contra o medo da morte (COSTA, 2021, p. 195, grifos do autor).

O que poderia parecer contraditório – suicídio e defesa “contra o medo da morte” – pode ser esclarecido levando em conta que se trata do medo de uma morte psíquica, “da desagregação do núcleo da identidade egóica” (COSTA, 2021, p. 196). Freud ([1923]/1980a, p. 58)1 já apontava para o mecanismo da radical renuncia à vida que ocorre no eu quando da perda do amor: “com efeito, viver tem para o eu o mesmo significado que ser amado: quer ser amado pelo supereu, que também nisso se apresenta como sub-rogado do isso”. Essa estreita relação entre ser amado e a sobrevivência do eu pode ser compreendida traçando as origens do supereu. Freud ([1930]/ 1980b) segue a trilha desde o desamparo e dependência da criança até o estabelecimento da instância crítica. Essa trilha passa pela [angústia] frente a perda do amor. Para esse ser desvalido, o risco se apresenta como insuperável: “se perde o amor do outro, do qual é dependente, fica também desprotegido contra perigos diversos, sobretudo frente ao perigo que esse alguém tão poderoso lhe demonstre a superioridade em forma de castigo” (FREUD, 1980b, p. 120).

Com essas considerações oriundas das teorias psicanalíticas, queremos realçar que as ações para a construção de uma agenda de prevenção ao suicídio precisam levar em consideração os mecanismos psíquicos envolvidos nas situações-limite vividas por crianças e adolescentes. Ainda que presentes antes do surgimento da pandemia, essas situações-limite foram agravadas para essa população, mesmo em lugares com altos índices de desenvolvimento social, como o Japão (ISUMI et al., 2020) e Europa (HOEKSTRA, 2020).

1 – A data entre colchetes indica o ano de publicação original da obra. Nas citações seguintes será registrada apenas a data da edição consultada pelos autores.
Luciana Gageiro Coutinho lugageiro@uol.com.br

Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio), Brasil, Pós-Doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Membro do NIAJ/UFRJ e Coordenadora do LAPSE/UFF. Professora Associada da Faculdade de Educação/Departamento de Fundamentos Pedagógicos da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.

Edson Guimarães Saggese edsonsaggese@gmail.com

Psiquiatra, Psicanalista, Professor do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), Brasil. Fundador do Centro de Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes (CARIM/UFRJ). Atualmente coordenador do ProAdolescer, laboratório de pesquisa da UFRJ.

Ivone Evangelista Cabral icabral444@gmail.com

Enfermeira pediátrica e Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Pós-doutorado em Mental Health and Transcultural Psychiatry pela McGill University, Canadá. Pesquisadora do CNPq. Membro da Sociedade Brasileira de Enfermeiros Pediatras e Associação Brasileira de Enfermagem – RJ, Brasil.