Recentemente, viralizou na Internet e chegou a virar notícia nos telejornais o vídeo1 de uma criança síria de três anos, residente em zona de guerra, que, estimulada por brincadeira criada pelo pai, tinha ataques de risos cada vez que ouvia o som de bombardeios. Esse vídeo é ilustrativo da radicalidade da concepção de mediação das instâncias parentais em relação ao sentido do que se passa com o sujeito durante a infância, conforme formulada por Ferenczi (1992a/1912). Como é possível observar nesse caso curioso, a estimulação mecânica do impacto das bombas em locais próximos não era suficiente para provocar automaticamente nenhuma sensação de terror, tendo em vista a mediação simbólica da brincadeira proposta pelo pai. Longe de querer depositar sobre os ombros dos pais a responsabilidade dos traumas provocados nas crianças pelo horror da guerra na Síria, o que se pretende destacar aqui é como se torna fácil perceber, a partir desse exemplo extremo, aspectos da vulnerabilidade da criança na relação com os adultos. Esse exemplo parece ser adequado para introduzir uma discussão sobre a dificuldade de se discernir as necessidades de um sujeito criança envolvido em uma relação abusiva.
O presente artigo tem o objetivo de discutir as dificuldades que podem surgir no acompanhamento a crianças que sofreram abuso sexual. Ele deriva da pesquisa intitulada Sobre o acompanhamento do CREAS a crianças vítimas de abuso sexual: um estudo a partir de Ferenczi2. Nesse estudo, procurou-se investigar como se deu o acompanhamento de um caso de criança que sofreu abuso sexual atendido por um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de um município de médio porte no Estado do Rio de Janeiro. O CREAS é um dos serviços que operacionalizam a Política de Assistência Social no Brasil. Uma de suas principais atribuições é atender famílias nas quais há situações de violência ou grave ameaça.
Para realizar a pesquisa, foi utilizada metodologia qualitativa que contemplou o estudo de um único caso segundo os fundamentos do “caso revelador” (Yin, 2001, p. 63). A pesquisa de caso único justifica-se, tendo em vista o pesquisador — que também é trabalhador da rede de proteção social do município pesquisado — estar, de forma oportuna, em posição favorável para a investigação aprofundada de fenômenos de difícil acesso e observação (Yin, 2001). Nessa investigação, seguiu-se as pistas encontradas em pesquisa anterior que indicaram o caso concreto ter como uma de suas funções principais realçar as contradições e questionar as teorias e as diretrizes de trabalho nas políticas públicas (Oliveira; Guljor; Verztman, 2015). Para a realização do estudo, procedeu-se da seguinte forma: primeiro, escolheu-se o caso revelador tendo como critério ser uma criança atendida no CREAS em decorrência de abuso sexual, e que tenha sido indicada pela equipe como caso gerador de grande dificuldade no acompanhamento; depois, realizou-se a análise do prontuário do caso e entrevistas com três profissionais que o atenderam, a saber: um conselheiro; uma psicóloga do Conselho Tutelar e uma assistente social do CREAS. Como forma de balizamento teórico para análise dos dados, debruçou-se sobre a obra de Ferenczi e sua concepção própria de trauma, particularmente sobre a cena da desautorização do relato de sofrimento da criança, que será melhor explicada adiante. Escolheu-se a concepção de trauma segundo Ferenczi, pois sua ênfase relacional favorece um melhor discernimento das necessidades do sujeito envolvido em relações abusivas. Em outras palavras, podemos ler na ênfase dada por esse autor um clamor para que se discuta a política dos adultos em relação aos infantes — a qual pode ser, muitas vezes, produtora de silenciamento.
Sándor Ferenczi (1873-1933), psicanalista nascido na Hungria, mesmo nunca tendo atendido crianças, ganhou notoriedade por suas observações a respeito das consequências emocionais verificadas clinicamente em adultos traumatizados na infância. A sua formulação sobre a traumatização é conhecida como o “mito do trauma ferencziano” (Pinheiro, 1995, p. 74) por ser usualmente explicada com o auxílio de uma pequena história que pode ser dividida em duas cenas. Em síntese, temos a primeira cena de comoção psíquica na qual um adulto comete abuso sexual contra uma criança que, mesmo opondo certa resistência, acaba sucumbindo ao poder desproporcional do agressor. Nessa cena, prevalece a autoridade do ofensor diante de um ser cuja personalidade ainda está em formação e, por isso, tende a se submeter facilmente, mesmo em pensamento. Tal evento afeta a criança de forma que “a confiança no testemunho de seus próprios sentidos está desfeita” (Ferenczi,1992c/1933, p. 102). Além disso, é decisivo para a traumatização a existência de uma segunda cena de desautorização social, a saber: na sequência dos fatos, após o abuso, o relato da criança sofre uma “negação” [Verleugnung] (Ferenczi,1992b/1931, p. 79), ou seja, ele não é reconhecido como válido por nenhum adulto de confiança que a criança procura para falar sobre o ocorrido (Ferenczi, 1992c/1933, p. 103).
No presente artigo, em consonância com Kupermann (2015) e Figueiredo (2018), em vez de “negação” (Ferenczi,1992b/1931, p. 79), preferimos traduzir o termo Verleugnung, na obra de Ferenczi, por “desautorização” (Kupermann, 2015, p. 42). Alguns comentadores utilizam outras traduções como desmentido ou descrédito, porém, o termo escolhido realça o sentido da “desapropriação subjetiva promovida no sujeito em estado de vulnerabilidade pelo encontro traumático” (Kupermann, 2015, p. 42). Essa compreensão tem a vantagem de evidenciar que, no processo traumático, ocorre uma não autorização de nuance social, impossibilitando que o sujeito converta o episódio de abuso em uma experiência de sua própria autoria (Figueiredo, 2018).
É importante ressaltar que não apreendemos da obra de Ferenczi o sentido da vulnerabilidade da criança enquanto uma questão universal definida exclusivamente pela faixa etária. Mesmo sendo possível encontrar em seus textos termos referentes à imaturidade psíquica da criança enquanto fator agravante, em sua obra Confusão de Língua entre os Adultos e a Criança (1933), verifica-se que seu foco principal de interesse está em discernir um sujeito criança em situação de vulnerabilidade, tendo em vista a incidência de relações abusivas com adultos próximos responsáveis pelos seus cuidados. O que está em jogo aqui são os efeitos clínicos de uma quebra radical de confiança, situação traumática, aliás, em qualquer idade. Estudos referentes à “traição institucional” [institutionalbetrayal] (Smith; Freyd, 2014, p. 575) corroboram a relativização da faixa etária no campo de discussão sobre a vulnerabilidade. Esses estudos versam sobre os efeitos traumáticos da relação entre sujeitos adultos e instituições, que ocorrem quando há, por exemplo, a quebra de confiança por conta da conivência institucional com práticas violentas como o machismo, o racismo ou abusos sexuais (Smith; Freyd, 2014).
Na obra de Ferenczi, é possível verificar a atenção dada aos sujeitos em situação de vulnerabilidade em diversas faixas etárias. O autor se refere tanto às crianças na relação com os adultos, quanto ao cidadão na relação com as instituições e, até mesmo, aos pacientes na relação com os analistas. Porém, é importante fazer a ressalva de que Ferenczi nunca dirigiu diretamente suas análises para o plano social ou político, e se limitou ao microcosmo da clínica dos sujeitos traumatizados e retraumatizados por relações marcadas pela “hipocrisia” (Ferenczi,1992c/1933, p. 100), ou seja, em decorrência da quebra de confiança na relação com pessoas próximas que não reconhecem e nem tentam reparar as suas falhas.
Essa apreensão da vulnerabilidade do sujeito criança enquanto uma questão destacada da faixa etária, que podemos ler em Ferenczi, está afinada a estudos de caráter antropológico que se debruçaram sobre a desconstrução de uma infância universal (Ariés, 1981; Couto; Borges, 2018). Esses estudos são de grande importância, pois, ao romperem com a lógica científica de pretensão universalista, que é historicamente eurocêntrica e, posteriormente, norte-americanocêntrica, contribuem para a construção de políticas públicas capazes de enfrentar problemas com os quais a lógica universalista não é capaz de lidar (Arantes, 2009; Couto; Borges, 2018). O acompanhamento a crianças vítimas de abusos com o intuito de interromper, em cada situação, o ciclo de violência3, é um exemplo desses problemas que não podem ser enfrentados apenas com pretensões de universalidade. Com efeito, o campo de atuação do CREAS revela, de maneira contundente, como a ficção de um saber universal sobre o que é violência e como se deve intervir sobre ela se choca com as particularidades das famílias acompanhadas e dos contextos em que se inserem. Nesse campo de atuação profissional, passamos inevitavelmente para o campo do caso concreto. Campo no qual deve imperar a escuta dos sujeitos, de suas singularidades e estranhezas.
A vulnerabilidade das crianças em relação aos adultos é ilustrada por Ferenczi (1992c/1933) com a expressão húngara katonadolog [a sorte do soldado], cujo sentido em português está próximo da sentença meninos não choram. Com essa expressão, o autor faz alusão à política de silenciamento dos adultos em relação às crianças — chamada em sua obra de desautorização — e realça, ao apelar para esse ditado popular, como ela não é incomum. Discerne também em sua análise como essa política opera, fazendo recair exigências de um grau de heroísmo frente à dor que é insuportável para os vulneráveis. Quando se trata de infantes, as consequências da relação com as pessoas amadas para a estruturação do Eu são profundas. A imagem corporal ainda frágil e eminentemente adaptável ao seu ambiente, por falta de outros recursos para reagir de forma a modificar o mundo, é a razão de as crianças serem suscetíveis aos mais diversos adoecimentos psicossomáticos (Dolto, 1984/2002).
É possível afirmar que, a partir da obra de Ferenczi, pode-se desvelar os efeitos da política que os adultos estabelecem sutilmente em relação às crianças no cotidiano. Ferenczi alerta que “[…] os adultos reagem com um silêncio de morte que torna a criança tão ignorante quanto se lhe pede que seja” (Ferenczi, 1934/1992e, p. 111). Em alguns casos, como visto anteriormente, essa política sutil pode fazer uso de um discurso de não reconhecimento da vulnerabilidade da criança, que exige delas um heroísmo intolerável. Porém, eventualmente, pode ocorrer o seu oposto. Em consonância com Arantes (2009), o discurso a respeito de uma vulnerabilidade universal pode também instituir de forma camuflada uma cultura excessivamente tutelar de alienação do direito das crianças de serem escutadas.
Apesar de aparentarem serem opostas, em ambas as situações, não se colocam em discussão as dinâmicas de poder e a qualidade das relações estabelecidas com o infante na situação concreta. Sem querer desmerecer os avanços referentes aos marcos legais gerais como a Declaração Universal dos Direitos da Criança4, parece ser importante, quando se está diante de um caso de violência, não pensar que tudo já foi dito sobre esse assunto. É importante reconhecer a necessidade de debater no presente as relações que são estabelecidas com as crianças com o objetivo de estar sempre produzindo, em cada caso que é tão singular e imprevisível, reparações que engendrem mudanças reais em relações abusivas.
2 – Esta pesquisa resultou em uma dissertação de mestrado defendida em 2020 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Ela foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFRRJ (processo: 23083.037263/2019-15).
3 – É importante que, em primeiro lugar, seja interrompida a violação identificada, mas é preciso que também haja a intervenção nos fatores causadores da violência para que ela não se repita (CFP, 2020).
4 – A Declaração Universal dos Direitos da Criança é um documento internacional que afirma o direito dos infantes e que foi adotado pela ONU a partir de 1924.