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Os “nós” da rede: a construção de ações intersetoriais na prevenção ao uso de drogas com jovens escolares

Discussão

A intersecção entre os setores sanitários e de educação que institui o Programa de Saúde na Escola (PSE) preconiza que ações de promoção à saúde e prevenção de agravos ocorram em ambiente escolar. Entretanto, as entrevistas realizadas com profissionais de saúde responsáveis pelo PSE em diferentes territórios revelaram alguns entraves na articulação intersetorial e dificuldades na implementação das medidas propostas pelo decreto. Tais constatações se assemelham às encontradas na literatura, permitindo inferir que não se trata de uma especificidade do município, mas de características comuns à Atenção Básica de Saúde em diferentes localidades (Vieira et al., 2014).

Um dos principais marcadores encontrados nas entrevistas com os profissionais se refere à fragilidade intersetorial e à escassez de recursos humanos. A “falha” na articulação entre os serviços de saúde e escola mostra-se presente no número reduzido de trabalhos que são realizados no âmbito escolar, sendo necessário destacar que a maioria está relacionada a um modelo de saúde fragmentado, centrado na doença e com foco exclusivamente curativo (Foucault, 1977). Esse viés de assistência contempla preferencialmente os aspectos biológicos em detrimento dos aspectos psíquicos e sociais, o que se relaciona igualmente com a hierarquia de ações preconizadas pelo PSE, uma vez que as “ações básicas” propostas envolvem a prevenção de doenças físicas, como a antropometria, avaliação clínica, entre outras (Brasil, 2007).

Ainda que historicamente o conceito de saúde esteja relacionado à ausência de doenças e à divisão entre corpo e mente, atualmente, o conceito de saúde pressupõe um olhar integrador e que ultrapasse as barreiras biologicistas e patologizantes (Organização Mundial da Saúde, 2006). Essa fragmentação é resultante do modelo do ensino disciplinar em saúde que compartimentaliza os processos da vida. Em virtude de a prática de ensino em saúde adotar uma postura tecnicista, demais áreas do conhecimento como a Atenção Básica carecem de ensino e formação ao profissional da saúde (Bispo; Tavares; Tomaz, 2014). No processo de formação, a predominância do ensino técnico individual das disciplinas em saúde pode causar um distanciamento da atuação interdisciplinar em equipes. A interdisciplinaridade, de acordo com Scherer, Pires e Jean (2013), visa à construção compartilhada de ações e práticas através da articulação e compartilhamento de saberes técnicos específicos de cada disciplina.

Além disso, a comunicação entre saúde e escola costuma ocorrer de forma pontual, sendo que, em muitos casos, a equipe do PSE só realiza ações na escola mediante solicitação. A pontualidade no contato entre as instituições fica evidenciada através do excerto a seguir, quando profissionais relatam que as atividades efetivadas no ambiente escolar enfocam a saúde em seu conceito biológico, realizando atividades consideradas “básicas”, conforme mencionado anteriormente:

O nosso objetivo foi, até então, a gente conseguiu fazer o quê? Verificar pressão, altura, peso, acuidade visual e peso da mochila, de todos esses alunos, aí agora nossa segunda fase é fazer a consulta de enfermagem, que é ver como que é a relação com os pais, como que é a relação com os professores, como é a alimentação, quais são as atividades de lazer, o que eles fazem quando não tão na escola (Unidade 7).

Nesse contexto, observou-se que existe uma grande lacuna entre esses setores. Algumas unidades de saúde justificam essa ausência pela escassez de pessoal, dado que as equipes do PSE contam com um número reduzido de profissionais que, frequentemente, já enfrentam sobrecarga dentro da unidade, o que acarreta na não priorização do programa: “Como eu te disse, a gente não tinha, né? A gente não tinha abertura, equipe disponível pra isso, né? [pausa na fala] Que a gente até tentou, né? Mas infelizmente não” (Unidade 7).

Outro fenômeno que permeia o cotidiano dos serviços é a rotatividade de profissionais. Para Medeiros et al. (2010), rotatividade é a constante entrada e saída de profissionais, voluntária ou involuntária, afetando consequentemente a organização da instituição, podendo acarretar prejuízos na atenção ao usuário. A rotatividade pode ser considerada positiva em alguns casos, como na eventual saída de profissionais não estratégicos. Todavia, a rotatividade ordinariamente envolve atores chaves na instituição, prejudicando a eficácia dos processos organizacionais de trabalho.

O estudo realizado por Tonelli et al. (2018) aponta que a rotatividade de profissionais nas equipes da Atenção Básica é um entrave no estabelecimento de vínculo com o território, comprometendo o cuidado longitudinal. Corroborando os estudos supracitados, os prejuízos da efetivação de ações de promoção em saúde no ambiente escolar, devido à rotatividade, ficam evidenciados por meio da fala deste profissional entrevistado:

Eu tô iniciando, na verdade, […] eu comecei a fazer atividades na escola agora […]; em outubro e novembro, […] então a gente quer tentar mais para o ano que vem se organizar, uma escala de atividades, conforme a demanda das escolas pra gente trabalhar, né? (Unidade 12).

A estabilidade dos profissionais da Atenção Primária, de acordo com o trabalho de Medeiros et al. (2010), fora considerada pedra angular para a construção de ações e práticas que busquem contemplar os elementos de integralidade e incorporá-los ao seu modo de trabalhar. Em relação aos motivos que ocasionam a rotatividade, Medeiros et al. (2010) elencaram, a partir da análise dos dados, nove categorias apontadas pelos profissionais da atenção primária, sendo elas: estilo de gestão; as equipes e o processo de trabalho; influência político-partidária; regime de trabalho e remuneração; condições de trabalho; conciliação entre a vida profissional e a pessoal; oportunidades de mercado; vínculo com a comunidade; formação e perfil.

Em consonância com Tonelli et al. (2018), o período mais longo de permanência de profissional de nível superior dentre os entrevistados fora o do profissional cirurgião dentista. De acordo com as narrativas de nosso estudo, os profissionais da saúde bucal foram apontados como os responsáveis pelo Programa de Saúde na Escola (PSE), o que pode evidenciar uma maior permanência destes nos serviços. A fala a seguir é de uma profissional da saúde bucal, relatando sua permanência no serviço após a troca de toda a equipe, gerando consequências na realização das ações na escola:

Os problemas que a gente teve na unidade… trocou toda a equipe, ficou só eu perdida aqui [risos] então tá todo mundo se chegando ainda, né? […] Dentista não tem, a médica também faz duas semanas que tá na unidade. […] Trocou toda a equipe, […] nós não tivemos tempo ainda de sentar e conversar pra ver o que que vai ser feito (Unidade 6).

Na maioria dos territórios em que as unidades de saúde participantes estavam inseridas, a temática da drogadição fez-se bastante presente, havendo conhecimento de alguns dos profissionais acerca de pontos de tráfico e do uso e venda de drogas nos arredores das escolas. Paradoxalmente, a demanda referente a drogas não chega diretamente aos serviços e, quando o faz, é encaminhada para os serviços especializados (Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência – CAPSia e Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas – CAPSad), não havendo acompanhamento da Atenção Básica. Essa fragmentação dos serviços e a atribuição dos cuidados no viés da expertise vai na contramão dos princípios do SUS, dado que o cuidado em saúde deve ser descentralizado e horizontal (Brasil, 1990).
Nesse sentido, foi predominante entre as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Estratégias de Saúde da Família (ESF) o sentimento de incapacidade e despreparo dos profissionais para acolherem e abordarem o tema: “[…] não foi trabalhado muito a fundo, até porque […] é uma coisa meio delicada de se trabalhar aqui, tem que ter um fundamento bom, assim” (Unidade 3). Para Vieira et al. (2014), esses sentimentos são o sintoma gerado pela formação desintegrada dos profissionais de saúde, havendo pouco espaço para a discussão de temas que extrapolem o modelo nosográfico. Ademais, a ausência de educação permanente também fora um fator evidenciado na realização da presente pesquisa, como um entrave na formação profissional em saúde. O recorte a seguir traduz essa concepção:

Então assim, é uma coisa que ela [a escola] sempre nos pede tá? Mas é que realmente nós aqui do posto, nós não tinha feito atividade alguma assim. Até porque assim, a enfermeira não tava dando conta da demanda aqui e nós odonto não tinha como abordar (Unidade 6).

Destaca-se também o receio quanto à própria segurança ao trabalharem a questão da droga, considerando, conforme exposto anteriormente, que muitos territórios são marcados pelo tráfico de drogas:

É, né? Vê a quantidade de jovens que a gente tem que morrem por causa disso, né? Esse final de semana no [território] teve mais um óbito, né? Mais um homicídio. E tudo em função da droga. […] E teve três, quatro um atrás do outro, que era por causa disso também, né? E são de adolescentes que eram aqui da escola também (Unidade 3).

A complexidade da discussão sobre drogadição suscita o envolvimento de diversas áreas de conhecimento. Para além das instituições de saúde e educação abarcadas nesse escrito, a temática da droga também é discutida no âmbito da segurança pública. Visto isso, os profissionais entrevistados referem que as ações realizadas sobre drogadição no ambiente escolar também estão vinculadas ao Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD). Todavia, é importante salientar que as atividades realizadas pelo PROERD não se configuram como uma ação em saúde, uma vez que sua abordagem sobre os riscos que envolvem o uso de drogas ocorre sob um viés proibicionista, passível de penalidades jurídicas. Logo, a implementação do PROERD não exime a responsabilidade de cuidado da área da saúde. A seguir, é possível observar a incorporação da pedagogia do PROERD na criação de ações de promoção em saúde com adolescentes acerca da drogadição:

Trabalhamos muito forte e pesado drogadição, até nós contamos com a parceria, auxílio de uma militar [profissional do PROERD] […] pra nós assim, até o momento tá muito tranquilo. […] E também […] nós gostamos de colocar de forma bastante clara, né? Que nós trabalhamos o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], os direitos, mas nós trabalhamos deveres e penalidades, né? […] Eles ficam com os olhos bem apavorados. Mas eles têm que entender, né? Que enquanto indivíduos e enquanto cidadãos eles têm responsabilidade e eles vão ter penalidades pelos atos deles (Unidade 5).

A abordagem proibicionista pode comprometer a fluidez do diálogo com o jovem, desconsiderando seus desejos, curiosidades, formas de expressão de ser e estar no mundo. Ao utilizar do medo enquanto ferramenta para mantê-los afastados da substância, são reduzidos os espaços de fala e o protagonismo do adolescente sobre sua vivência. Essa metodologia apresenta fragilidades ao desconsiderar a complexidade da temática da drogadição e as nuances do uso de substâncias. Assim como por meio da experimentação, o compartilhamento de informações entre os pares acerca das substâncias psicoativas pode conduzir o jovem à descoberta de que o uso de drogas pode proporcionar uma sensação de prazer imediato, em detrimento dos riscos causados por elas. Sendo assim, um dos caminhos para a criação de estratégias em promoção de saúde com adolescentes pode ser o estabelecimento de um diálogo aberto, desprovido de julgamentos, concebendo o jovem como um sujeito crítico desejante, ativo no processo de construção do conhecimento (Feldmann et al., 2019).

Edna Linhares Garcia edna@unisc.br

Psicóloga Doutora em Psicologia Clínica. Docente do Curso de Psicologia do Programa de Pós-Graduação/Mestrado e Doutorado em Promoção da Saúde da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil e do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Psicologia na mesma instituição.

Mariana Soares Teixeira marianasteix@gmail.com

Graduação em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil. Atuou como Bolsista de Iniciação Científica PROBIC/FAPERGS no projeto Narrativas de adolescentes sobre drogas e os Serviços de Saúde Mental CAPSia e CAPSad: intersecções possíveis no contexto de Santa Cruz do Sul.

Kamilla Mueller Gabe k.mueller.gabe@gmail.com

Acadêmica de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil. Bolsista PUIC/UNISC vinculada ao projeto de pesquisa Narrativas de adolescentes sobre drogas e os Serviços de Saúde Mental CAPSia e CAPSad: intersecções possíveis no contexto de Santa Cruz do Sul.

Gabriela da Silva Oliveira gabi2010.gs@gmail.com

Acadêmica de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil. Bolsista PUIC/UNISC vinculada ao projeto de pesquisa Narrativas de adolescentes sobre drogas e os Serviços de Saúde Mental CAPSia e CAPSad: intersecções possíveis no contexto de Santa Cruz do Sul.

Denise Vidal dvidal@mx2.unisc.br

Acadêmica de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil. Bolsista PROBIC/CNPq vinculada ao projeto de pesquisa Narrativas de adolescentes sobre drogas e os Serviços de Saúde Mental CAPSia e CAPSad: intersecções possíveis no contexto de Santa Cruz do Sul.

Rayssa Madalena Feldmann rayssafeldmann@gmail.com

Psicóloga. Mestranda no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Promoção da Saúde pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil.

Letiane de Souza Machado letianemach@gmail.com

Nutricionista. Mestranda no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Promoção da Saúde pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Brasil.