Jalusa Arruda – Quer dizer que medidas menos severas são mais eficazes para evitar a reincidência?
Maria João Leote de Carvalho – É o que a literatura científica aponta. Na justiça juvenil em Portugal, temos um direito educativo centrado na educação para o direito. Isso quer dizer que, em nosso sistema, não basta que o jovem tenha cometido aqueles fatos, pois o jovem tem que ser avaliado na sua personalidade e no seu contexto para verificar as necessidades de educação para o direito para só depois poder ser aplicada uma medida judicial. O jovem pode ter cometido um fato grave, mas pode ficar provado que aquilo não passou de um conjunto de circunstâncias e que, para o melhor do jovem e da comunidade, mais vale a justiça não intervir com a medida de privação de liberdade e ser aplicada outra medida ou até mesmo concluir-se pela desnecessidade da intervenção judicial do que intervir mal. Porque é isso também que a literatura científica nos evidencia: às vezes, a intervenção da justiça, em especial, se for com respostas muito severas, mas descontextualizadas das necessidades do jovem, pode causar maiores danos e reforçar a sua trajetória criminal em vez de ressocializá-lo e evitar a reincidência. A lei refere que a privação de liberdade é uma medida de natureza excepcional e a privação de liberdade deve sempre ser o último recurso.
Jalusa Arruda – Então baixos índices de reincidência são indicadores da eficácia da medida aplicada?
Maria João Leote de Carvalho – Sim, até um certo ponto podemos ir nesse sentido, mas é necessário cruzar com outros indicadores, pois sabemos que estes jovens são apenas a ponta da pirâmide da delinquência juvenil. É difícil ter uma avaliação fora do contexto português, mas temos visto nos últimos anos um aumento significativo de intervenções pelos sistemas de justiça e a partir de uma perspectiva neopunitivista, que na justiça juvenil tem encarcerado mais jovens.
Jalusa Arruda – No Brasil é similar, especialmente em relação à adolescência e juventude negras.
Maria João Leote de Carvalho – Sim, mas aqui em Portugal tem outra questão importante. Do ponto de vista político, é interessante notar que, na última discussão pública ocorrida há uns anos sobre esta matéria no Parlamento português, com exceção do CDS-Partido Popular (CDS-PP), [partido político português conservador], que levantou a possibilidade de redução da imputabilidade da idade penal para os 14 anos, de resto a infância e a juventude é uma área em que as várias perspectivas políticas ou partidárias têm tido um relativo consenso (esta afirmação remete para a composição do Parlamento na legislatura anterior às eleições de 2019).
Nosso problema é outro, e diz respeito ao Regime Penal Especial para Jovens Delinquentes que contempla os designados jovens adultos com idades entre os 16 e 21 anos e que é já um Direito Penal. O Estado português é alvo de críticas por parte das instâncias internacionais, porque, com isso, não cumpre integralmente a Convenção sobre os Direitos da Criança (o regime penal especial é da década de 1980, ou seja, antes da Convenção). Aqui a maioridade penal é aos 16 anos, diferente do que orienta a Convenção. O regime penal especial para jovens adultos garante que deve ser evitada a aplicação da pena de prisão, mas a verdade é que, entre os 16 e 18 anos, eles são condenados em tribunais de adultos e, mesmo com a aplicação do regime penal, seguem para prisão de adultos. Isso porque os centros de detenção especializados para jovens previstos no regime penal especial nunca chegaram a ser construídos. Esse regime não é de aplicação obrigatória e depende da opção do juiz que tem de fundamentar na decisão a sua opção pela não aplicação, nos casos em que isso aconteça. O maior problema é que o regime está desatualizado do que é a condição de jovem na atualidade e não é fornecido ao tribunal e ao juiz, em particular, a opção de medidas, tampouco existem os recursos mais adequados às especificidades de certos casos, nomeadamente quando se cruzam outras necessidades como, por exemplo, relacionadas à saúde mental. Essa é uma questão que está por resolver na justiça portuguesa.
Jalusa Arruda – Pensando nas idades, podemos dizer que há uma curva especialmente selecionável para o sistema de justiça juvenil?
Maria João Leote de Carvalho – Na literatura científica, encontramos que, independentemente da cultura e do país, tende a haver uma correspondência, uma curva de idade que associa um pico da prática de delitos. Apesar dos jovens não serem os responsáveis pelo maior número de crimes do ponto de vista absoluto, sabemos que, percentualmente, a proporção e a tendência para a prática de ilícitos começa a aumentar a partir do final da infância e tende a atingir um pico entre os 15 e os 19 anos. É a faixa etária em que está concentrado o maior número de prática de ilícitos e, então, mais sujeita às respostas do sistema de justiça. Mas o que também vemos acontecer é que a maioria dos jovens, a partir dessa idade, tende a desistir da prática de delitos. Nesse aspecto, vemos o peso do desenvolvimento (a prática pelo risco, pelo desafio, pela quebra da norma), que nalgumas situações acabam por configurar em ilícitos.
No sistema português, ao fechar a possibilidade de intervenção pela justiça juvenil naqueles entre os 12 e os 16 anos, o que temos é que, às vezes, pela demora no trâmite judicial ou porque os fatos foram cometidos aos 15 anos, muitos começam a executar as medidas após os 16 anos, alguns dos quais já com prática de crimes após essa idade. Com isso há o encontro entre o sistema tutelar educativo e o penal, que na prática é difícil de operacionalizar. O jovem em casos assim tem que cumprir a medida pela lei tutelar educativa, mas caso cometa algum crime após os 16 anos, o juiz do penal pode decidir mantê-lo em execução de medida ou decidir no âmbito penal outra medida para complementar, mas é algo que tem pouca aplicação prática6. O que temos observado, por fim, é que de fato há uma curva de idade demonstrada em estudos internacionais e que coincide com os dados aqui em Portugal. Entretanto, agora passando aos estudos mais longitudinais também a nível internacional, há um aumento do número de adolescentes mais novos, a partir dos 11-12 anos, envolvidos em delitos. Resta saber se é reflexo da transformação dos mundos sociais da infância ou se é por que o sistema de controle social formal está mais preocupado com eles e, assim, estão mais visíveis para as instituições.
Jalusa Arruda – A senhora acredita que pode ter algo a ver com a política de repressão às drogas?
Maria João Leote de Carvalho – Em Portugal, há mais de 20 anos temos uma política de descriminalizar o consumo de drogas, e nossa política tem sido apontada como referência internacional. Obviamente, isso nos levou a reduzir as práticas de crimes associadas às drogas. Há consumo, mas que é visto como um problema de saúde que deve ser tratado no sistema de saúde. Resta-nos saber se essas respostas são ou não adequadas, mas fato é que os jovens não são mais criminalizados só por consumirem drogas, e por isso não temos uma situação como outros países em que grande parte da delinquência juvenil está fortemente associada ao próprio consumo.
Outra questão é o patamar do tráfico de droga, que tem a ver com a situação geográfica de Portugal, e em muito associadas com o tráfico internacional. Então, não são os menores que estão mais associados ao tráfico de drogas. Mas sim, em alguns territórios, em alguns bairros mais fechados, as crianças e jovens servem como correios em pequenas entregas. Por exemplo, na minha tese de doutorado (Carvalho, 2010), acompanhei crianças muito novas, abaixo dos 12 anos – eram casos raros –, mas que falaram dos seus percursos e das distribuições que faziam no bairro. Interessante que depois esses casos não estavam nas ocorrências policiais, porque são questões que estão bem fechadas em alguns territórios. Há territórios que são segregados e que têm concentração de problemas sociais, territórios que têm concentração de indivíduos associados a redes criminosas e que é um patamar já de organização de criminalidade, em alguns casos, uma criminalidade organizada e violenta.
Ainda com vista ao consumo, temos que ver também um conjunto de novas drogas, algumas das quais quase que socialmente aceitas, e que estão associadas a todas as classes sociais, incluindo jovens de classes sociais mais abastadas, relativamente aos quais pouco se fala. Falo das “pastilhas” [em referências às drogas sintéticas] consumidas em festas que, ainda que consumida por outras gerações, são vistas como socialmente aceitas por crianças e adolescentes. Isso tem a ver com uma outra visão que as “pastilhas” despertam, pois em relação ao consumo das décadas de 1980/1990 não são percebidas por muitos como as ditas “drogas duras” tradicionais. Agora, as questões do consumo mais preocupantes em tempos atuais, se calhar, estão relacionadas às dependências das tecnologias, que acaba por ser uma nova adição, numa perspectiva que é expansiva a toda infância e juventude e, em muitos casos, sem controle. Podemos dizer que temos aí uma nova dependência para qual ainda não temos uma resposta, que é a dependência e as adições a determinadas atividades com uso das tecnologias e que levam às práticas de delinquência e de crimes. Essa é uma questão fulcral no meu trabalho de pós-doutorado, pois acredito que vai alterar radicalmente a própria concessão dos instrumentos da justiça e das execuções das medidas7.
Jalusa Arruda – Ainda sobre as idades, quais seriam as melhores formas de intervenção tendo em vista o perfil etário de adolescentes?
Maria João Leote de Carvalho – Como disse, ao invés de apontar para uma mera punição, nosso sistema caminha no sentido da educação para o direito. Daí que temos que ter mais atenção para os programas de privação de liberdade, pois aqui temos visto que medidas de não institucionalização quando bem executadas têm resultados melhores, a exemplo das medidas comunitárias. Contudo, para isso, é necessário haver recursos adequados e o problema é que escasseiam e são vistos como de menor importância pelo decisor político.
Nessas medidas, uma primeira perspectiva é do jovem se inserir num contexto concreto comunitário com um tutor e desempenhar uma tarefa ou um plano de atividades e compromissos a cumprir em que, usando suas competências, resulte também por ser reconhecido e ter outra visibilidade na própria comunidade. A segunda é que se trata de um trabalho muito mais individualizado que vai permitir acesso e entendimento com a própria vítima. A questão é que as medidas de reparação esbarram na negativa da vítima em querer ter contato com o jovem, mas são medidas que podem sim ter ações muito mais efetivas.
Ainda, na justiça juvenil em Portugal, a mediação tem força de suspensão do próprio processo. O Ministério Público abre o inquérito, mas o próprio órgão, ao avaliar o caso e com o envolvimento de todos os intervenientes, incluindo o jovem e sua família, tem indicadores de avaliação que permitem apontar se vale a pena apostar num plano de conduta para aquele jovem. Então, o processo pode ser suspenso e é dada uma oportunidade ao jovem durante um determinado período, até no máximo de um ano, de ele desenvolver aquele plano de conduta estabelecido e com compromisso de todas as partes. Ao retomar o processo, se o plano tiver sido desenvolvido com sucesso, o caso nem segue para julgamento8.
O dado positivo é que, justamente nesses casos em que houve a suspensão dos processos com a intervenção do Ministério Público, encontramos menores taxas de reincidência – menores do que em qualquer outra medida, segundo a informação da DGRSP. Mais uma vez, podemos concluir que, em muitos casos, quanto menor e mais focada a intervenção pelo sistema de justiça e pelas instituições, melhor. Mas desde que existam os recursos necessários e se possa efetivar, com fundamento sério, a execução desse plano. Vê-se que é um plano de conduta diretamente voltado para aquele jovem em concreto, trabalha-se diretamente a ressocialização em seu contexto, e nem sequer se chega à necessidade de aplicação de uma medida tutelar educativa quando todo o plano é cumprido. No fundo, dá-se uma oportunidade para a promoção da mudança em tempo útil. Por isso, em termos de programas de atendimento, deve haver metodologias e programas com atendimento individualizado, efetivamente voltado para o jovem e no seu contexto comunitário.
Jalusa Arruda – Tribunais norte-americanos têm considerado aspectos da neurociência para tomada de decisões no âmbito do sistema de justiça juvenil em que questões relacionadas ao desenvolvimento e à culpabilidade são suscitadas pela Suprema Corte, reverberando em atenuantes ou mesmo na extinção de medidas mais graves (Cohen; Casey, 2014). Podemos dizer que é um movimento emergente que anda “à busca de uma idade” para o sistema de justiça juvenil?
Maria João Leote de Carvalho – Em primeiro lugar, essa é uma questão polêmica em torno das áreas da neurobiologia, do neurodesenvolvimento, da neuropsiquiatria e da neuropsicologia. O que temos que tomar nota, como referem diferentes autores, é que, só por si, o desenvolvimento na neurociência e de áreas correlatas não devem justificar uma reforma do sistema da justiça juvenil. Não se pode correr o risco de voltarmos aos tempos lombrosianos e da criminologia antropológica e bioantropológica e andar à procura de perfis, tipos biológicos ou genéticos que, apenas aparentemente, nos “resolvam” os problemas (Carvalho, 2019).
Agora, o que esses estudos nos trazem de contributos que não podem ser ignorados, é que o desenvolvimento do indivíduo e de sua personalidade não correspondem exatamente às idades fixas e se estendem por um período maior e estão muito mais relacionados às experiências dos indivíduos nos contextos aos quais estão inseridos. E novamente voltamos à questão social e à importância da Sociologia e da análise social, pois o desenvolvimento da personalidade e a maturação do desenvolvimento cerebral depende do contexto social. Exemplarmente, estudos nos mostram que experiências traumáticas na infância deixam marcas no desenvolvimento dos indivíduos e que jovens que tiveram percursos de maus tratos na infância poderão ter áreas do cérebro afetadas. De fato, são flexibilizações mais consideradas nos EUA, pois vale lembrar que lá a justiça juvenil funciona muito na base da jurisprudência e o país norte-americano não ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Lá é precisamente pela validação científica desses estudos que o próprio sistema de justiça juvenil tem evoluído numa proximidade ao disposto de alguns dos princípios da Convenção para este campo. Entretanto, a grande conclusão é que apenas esses resultados não bastam, pois é preciso entender de onde partem essas influências, e elas partem do contexto social.
Esses estudos mostram que não há uma idade fixa para considerar a maturação cerebral do jovem. Em certa medida, fazemos algo disso aqui em Portugal quando, por exemplo, o sistema de justiça juvenil somente aplica uma medida de privação de liberdade em regime fechado para aqueles que têm, no mínimo, 14 anos de idade e mediante não apenas uma avaliação social, mas também após uma avaliação psicológica especializada, após uma perícia forense sobre a personalidade do adolescente (entre os 12 e os 14 anos, independentemente da gravidade dos fatos, os jovens só podem ser colocados em centros educativos de regime aberto ou regime semiaberto). No caso da justiça juvenil portuguesa, a importância do desenvolvimento da personalidade está considerada na própria lei ao definir os instrumentos mínimos que devem ser adotados antes de decidir pela aplicação das medidas de privação de liberdade, que são as mais severas.
Jalusa Arruda – Não há risco de cairmos em leituras neopositivistas?
Maria João Leote de Carvalho – Para este assunto, eu recomendo os trabalhos de Elizabeth Scott e Laurence Steinberg (2008), que são dos mais citados nas decisões do Supremo Tribunal de Justiça nos EUA, e os próprios autores falam que a procura pelas neurociências pode ter um efeito perverso. É por isso que os autores alertam que o indivíduo não é só cérebro, tendo de haver atenção às mudanças no próprio modo de vida da infância e da juventude que têm se alargado e, por conseguinte, o tempo do desenvolvimento também se alargou. Há que se ter muita cautela e não perder de vista a interação que há entre o desenvolvimento biológico e o desenvolvimento social.
Nessa linha, na Europa, o sistema de justiça holandês é uma referência no que podemos chamar de sistemas mais flexíveis quanto à idade. Os Países Baixos tiveram uma reforma no sistema de justiça juvenil em 2014 que permite que os tribunais decidam se o jovem entre 18 e 24 anos vai responder no âmbito da justiça juvenil ou na justiça penal. As respostas, então, são mais flexíveis a depender da avaliação sustentada do caso, o que permite observar mais de perto, por exemplo, um jovem que apresenta percurso mais grave e frequente e, provavelmente, não será aos 23 anos que a justiça juvenil lhe servirá; mas, sem dúvida, poderá ser o caso para outros jovens com percursos diferentes. É a oportunidade de flexibilização das respostas judiciais atendendo ao indivíduo em seu contexto.
7 – A pesquisa de pós-doutorado da entrevistada centra-se na comparação das práticas de delitos por jovens de dois grupos etários: os que são abrangidos pela justiça juvenil (12-16 anos) e os que são abrangidos pelo regime penal especial para jovens adultos (16-21 anos) e na análise da tomada de decisão dos tribunais em ambos os sistemas de justiça (juvenil e penal). O projeto tem apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) (SFRH/BPD/116119/2016). Mais informações em: https://www.cics.nova.fcsh.unl.pt/research/projects/individual-projects/youth-offending-in-the-juvenile-and-criminal-justice-systems-in-portugal. Acesso: 14 jun. 2020.
8 – As medidas comunitárias citadas se assemelham às medidas socioeducativas de obrigação de reparar o dano e prestação de serviços à comunidade existentes na legislação especial brasileira. Ainda com vistas às análises correlatas, vale conferir as modalidades de remissão, também previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.