Entrevista de Beatriz Corsino com Paula Shabel e Marcia Gobbi
Beatriz Corsino – Marcia e Paula, vocês realizaram pesquisas tendo como tema as crianças que vivem em ocupação de imóveis por movimentos sociais. Eu gostaria que vocês falassem um pouco sobre como entendem esses contextos de luta por moradia na cidade de São Paulo e em Buenos Aires.
Paula Shabel – É um prazer, obrigada. Acho que é a primeira vez que compartilho os resultados da minha tese de doutorado depois de tê-la terminado. Eu trabalho com crianças dentre seis e dezessete anos em casas ocupadas da cidade de Buenos Aires. As casas ocupadas são um fenômeno muito comum na cidade, sobretudo desde a implementação da ditadura cívico-militar na Argentina, e ainda mais com a implementação do regime neoliberal que, bom, são muito similares à história do Brasil e da Argentina.
Suponho que sabemos, mais ou menos, o contexto sobre o qual estamos falando. Frente ao pouquíssimo trabalho que há, a população se concentrou muito em Buenos Aires e há uma falta absoluta de moradia, portanto, para essas populações migrantes, que se instalam no local onde há trabalho – muito precário, mas há trabalho –, e disso já são uma ou duas gerações. Portanto, há muitas crianças que nasceram nestas casas ocupadas, sua vida transcorreu sempre lá dentro e, portanto, um pouco, a pergunta era: como conhecem a política? Como conhecem a organização? Que ideias têm sobre os processos políticos organizativos essas crianças, que vivem suas atividades cotidianas em contextos de organização e em contextos de luta?
Particularmente, eu trabalho em bairros do centro da cidade de Buenos Aires, que é um contexto muito diferente do que são as villas, as favelas, que também são processos de luta pela moradia, mas esses são processos que têm sido historicamente mais ocultados, porque, ao virar a esquina da sua casa, há uma casa ocupada e talvez você não sabia, ficam ocultadas na lógica cotidiana da cidade. Porém, as crianças que moram nestas casas ocupadas ficam muito marcadas por seus vizinhos e também pelas escolas.
A maior problemática que há é a permanente possibilidade de expulsão, porque mesmo que estejam em diálogo constante com o Governo da Cidade de Buenos Aires, a possibilidade de que o acordo seja desfeito é permanente. Portanto, as crianças têm uma ideia muito concreta de que podem ficar sem lar, sem o lugar onde vivem cotidianamente e, partir daí, também conhecem a cidade, conhecem a escola, conhecem o mundo: a partir dessa organização permanente, por um lado, e, por outro lado, a partir dessa possibilidade permanente de ficar sem moradia.
Marcia Gobbi – Minha pesquisa resulta da busca por conhecer infâncias a partir de seus processos de elaboração de desenhos e fotografias. Essa procura encontrou lugares em que poderia coadunar a produção imagética e seus estudos à outra busca que julgo fundamental: a infância em luta em movimentos sociais. Durante algum tempo, a pesquisa se deu dentro do MST1, dentro do movimento social num tipo de assentamento que é considerado urbano, embora esteja na Grande São Paulo. Neste caso, as pesquisas todas estavam concentradas na cidade de São Paulo e no estado de São Paulo. Hoje não estou mais pesquisando o MST e acabei enveredando por uma pesquisa especificamente sobre as ocupações urbanas. Nós temos décadas de construção de lutas no espaço urbano constituídas num processo de urbanização que é absolutamente segregador, fato que já havia sido apontado por diversos pesquisadores, tais como Lúcio Kowarick, Nadia Somekh, Raquel Rolnik e Erminia Maricato, que chamaram a atenção de forma bastante consistente e admirável para essa cidade em constante disputa.
E nesse processo de disputa, ora é possível reconhecer a expulsão das famílias para as áreas periféricas, isso nos anos 70 e 80, quando se observa esse fenômeno de modo intenso na cidade de São Paulo, ora, mais recentemente, temos a busca dessas famílias pelo retorno e pela manutenção da moradia nas regiões centrais na cidade de São Paulo como um direito por conta do acesso e permanência no trabalho, por conta da própria mobilidade urbana, dos transportes, etc. Há então diferentes movimentos reivindicatórios que vão enfrentar o processo segregador permanecendo no centro.
É claro que isso se dá num momento em que temos cerca de 350 mil moradias vazias na cidade de São Paulo. E, no Brasil, cerca de 7 milhões de lugares vazios que poderiam ser utilizados para moradia. Nós temos praticamente a mesma quantidade de espaços vazios e de famílias requerendo esses mesmos espaços. Pensando nessas questões, existe uma lacuna bastante expressiva no âmbito das pesquisas que têm as crianças como seu objeto, mas que não estão sendo compreendidas nesse processo de luta.
É por isso que estou chamando de infância em luta, uma vez que, em tudo quanto é canto que nós vamos, a criançada está lá junto com os movimentos que organizam as ocupações, os momentos de festa, que são os momentos das ocupações, da construção da ocupação propriamente dita, e a criançada está lá.
Beatriz Corsino – Muitas pessoas podem dizer que as ocupações não seriam locais apropriados para uma criança viver, devido a sua precariedade e as possibilidades de conflitos com a polícia ou com os danos dos imóveis. Como vocês entendem essa questão?
Marcia Gobbi – Atualmente, estou pesquisando duas ocupações em regiões distintas da cidade de São Paulo. A ocupação chamada Jardim da União, que é no extremo sul da cidade de São Paulo, e a ocupação Prestes Maia, na região central, hoje a maior ocupação vertical da América do Sul. Essa convivência tem me tocado muito profundamente, tem me levado a pensar no que fazer. Politicamente, eu tenho algumas questões que fizeram com que eu tenha escolhido essa temática, não é à toa, mas essa convivência dá um sentimento de impotência, de desencanto. Eu acho que muitos de nós, pesquisadores, somos atravessados por esse sentimento, mas as pesquisas alimentam nosso desejo de lutar juntos.
Quando eu estou com as crianças, fica claro estar diante de vidas precárias. Ao estar com as crianças, elas vão se mostrando, brincando, fazendo diferentes atividades em ambas as ocupações e vão me dando a possibilidade de ver outro cotidiano a partir e com as crianças que estão lá, recriando suas próprias condições e a vida em diferentes modos de lutar. Isso tem se revelado em práticas sutis, ora trazendo desenhos extremamente bem elaborados e os criando junto a mim ou outros pesquisadores que estiverem comigo, ora chamando todo mundo para brincar juntos, e em outros momentos tirando fotos e/ou brincando de tirar fotos e de escolher as flores da ocupação (essa da região sul é horizontal, é tem terrenos floridos, embora esteja em permanente processo de transformação e construções de casas ou pequenas reformas).
Enfim, lá no Jardim da União, eu vejo as crianças curtindo os espaços, subindo em árvores, chamando a gente para ficar junto, parando para conversar, mostrando-se pertencentes a esse lugar e apropriando-se dele. Então, há uma convivência nessa precariedade – uma mostra de que esse lugar é delas, é quase uma dádiva, à moda do pensamento de Marcel Mauss2. Isso acontece na região sul. Certa vez, conversando com Sandra, que é uma super e sensível liderança local, ambas desabafamos sobre essas questões, sobre a precariedade imposta às nossas vidas e de alguns grupos, particularmente. Isso resultou numa grande viagem, verdade. Fizemos um combinado, algo que alterasse o cotidiano daquelas meninas e meninos, ainda que num único dia e de modo tão breve se comparado com a urgência de acontecimentos e mudanças estruturais em que vivemos. Assim, numa manhã, nem tão manhã assim, de sábado, muitas crianças e de variadas idades vieram a um museu de ciências, local escolhido por eles, todos numa van, cruzando a cidade, vindo para o Catavento, aqui na cidade de São Paulo, bastante visitado e situado na região do Brás. E aí, qual é a surpresa, né? Porque nós ficamos lá com a criançada.
Para mim, quando reflito sobre a pesquisa, o que poderia ser visto como um passeio teve um peso bastante grande. Tratou-se ali de amabilidades, de um circuito de confiança como bem precioso, daí eu me lembrar de Marcel Mauss, dar, receber e retribuir presentes é constante nessa relação. Conto isso também por não me esquecer das crianças chegando ao local. Eles diziam: “Isso tem na ocupação”, “Isso é lá de onde eu moro”. Um deles falou assim: “Ah, mas você é a mulher que vai para a ocupação. Você que vai na nossa casa”. Então essa conversa sobre casa e ocupação, sobre “este pássaro é um pássaro que tem na ocupação”, vai me dando algumas pistas para pensar o pertencimento a este lugar e, nessas entrefalas, uma movimentação de luta pela permanência nesse lugar. Revela-se, até onde compreendo, uma forma de enraizamento no lugar, que o consiste como seu, particular. Num momento de expulsões, como afirma Saskia Sassen3, sou levada a pensar, a partir dessas falas, em certa resistência, um freio à expulsão.
Isso, para mim, particularmente, é bastante forte. Em algumas das falas das crianças, enquanto foram desenhando, passeando conosco, vão nos mostrando elementos de uma luta de classes bastante forte. Então, elas falam: “Tem crianças que são muito ricas, né”? E aí param e falam, assim: “Mas nós não somos”. E aí eu fico pensando e converso com eles: “Mas então vocês queriam? Como é que é”? Tem alguns elementos bons para a gente pensar sobre isso. E eles falam também: “Não, porque na escola tem alguém que é rico. Aqui na ocupação não tem, aqui nós somos iguais”. Talvez iguais em forma e conteúdo de uma luta que se forja vagarosamente e constitui jeitos de ser menina e menino em ocupações. Faz-se necessário continuar, observar, estar junto e investigar…
Bom, até agora estou me referindo às crianças do Jardim da União, lá no extremo sul. Na região central há elementos bastante semelhantes nas suas falas. Há algo do apresentar-se mais, com vestimentas para as brincadeiras, mas há sempre uma participação muito grande. Algo como um processo de identificação das crianças, na região central, que é bastante consistente. Por exemplo, a ideia de que “Nós somos da ocupação Mauá”.
Do ponto de vista das lutas dentro e no centro da cidade de São Paulo, são duas grandes referências as ocupações Mauá e Prestes Maia, onde tenho permanecido. Elas têm grande importância e constantemente acessamos informações sobre suas lutas, conquistaram visibilidade e, creio, isso favorece a criação de elementos identitários em relação à ocupação.
Finalizei recentemente, junto a um orientando, o acompanhamento da ocupação do Largo Paissandu, que sofreu aquele incêndio trágico e bastante similar a outros que ocorreram e ainda acontecem constantemente em São Paulo, numa espécie de limpeza com fogo dentro da cidade de São Paulo, querendo referir-se à higienização da cidade, uma inegável manifestação da necropolítica, como diria Achille Mbembe4. Não sei se vocês tiveram a oportunidade de ver os gradis que foram sendo colocados e os moradores passaram lá, entre gradis, de primeiro de maio, quando foi o incêndio, até 10 de agosto. Processo de descaso revelado, entre outras coisas, pela fala de uma senhora entrevistada por mim, em que ela dizia: “Olha, nós estamos aqui feito bichos. Olha o que nós somos. Olha como nós fomos tratados”. Falava e, enraivecida, apontava para as grades e a curiosidade manifestada por muitos que olhavam, deixavam doações, ou não, e saiam, retornando a rotina diária que, para muitos, é também de agruras. “Animais enjaulados”, dizia ela. Ao observar as crianças, foi possível perceber que elas deram um uso especial para aquele lugar. Comentário de alguns moradores dos prédios do entorno, logo nos primeiros dias, e que foram ouvidos aleatoriamente, davam a entender que, até então, o espaço não tinha sido usado da mesma maneira.
As crianças que ocuparam, com suas famílias, o Largo do Paissandu, o encheram com seus sons, correrias e brincadeiras, relacionando-se com esse espaço que passou a ser disputado com passantes que contornavam motocas, bolas em jogo de futebol improvisado e, como descreveu Matheus, orientando de pesquisa, gerando desconforto entre as profissionais do sexo, trabalhadoras do local, que falavam: “Mas nós estamos trabalhando e as crianças estão nos atrapalhando no processo de negociação”. A criançada acabou se mostrando muito fortemente naquele espaço que havia sido criado na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad, um bom projeto para certas regiões da cidade, chamado Praia Urbana. Existem várias dessas praias na cidade de São Paulo e, curiosamente, uma delas está no Largo do Paissandu. Então, nós podemos dizer que houve uma apropriação do espaço. Mas essas vidas, que são precárias, e são tratadas com precariedade pelo poder governamental, por quem pensa projetos de habitação, acabavam mostrando outras possibilidades de uso do espaço urbano, impondo-se, e as crianças também se impondo nesse espaço e, curiosamente, o usando como deveriam ter feito durante todo o tempo.
Paula Shabel – Sim, acho que a Marcia dizia algo que é ressignificar a ideia desse espaço. Esse espaço não é nem todo perigoso, nem todo bonito, nem todo bom, como não é espaço nenhum. Perigosa é a pobreza. Perigosa é a falta de políticas públicas do Estado quanto à moradia, perigosa é a gentrificação. Há um monte de processos perigosos que afetam diretamente a vida material das crianças com as quais estamos trabalhando. Nesse sentido, também não vamos romantizar o cenário: é um cenário de múltiplos perigos. Mas não é somente isso. Na pesquisa, há um pouco do que a Marcia falava, dessa identidade, dessa pertença, e se há uma coisa que consegui observar no trabalho de campo, é que as crianças constroem um desejo muito grande de estar nesse lugar, e constroem sua identidade a partir da pertença a esse lugar. Além disso, tem uma coisa muito forte que surge, que é o permanente encontro. Essa é outra forma de viver a infância.
Nós temos uma imagem de infância muito individual, muito do que é a nossa família, e essa infância coletiva que surge dentro das organizações sociais – eu trabalho em casas que são prédios que têm três ou quatro andares, e moram todos lá dentro, e há espaços de encontro permanente. O valor que adquire o encontro para essas infâncias é um valor muito positivo, é um valor a partir do qual confluem sentidos e se constroem significados que geram infâncias com muita beleza e com um desfrute muito grande que também não pode ficar reduzido a um lugar perigoso ou um lugar pobre. Sim, é um lugar pobre. Mas o valor que tem para essas crianças o encontro, acho que é algo que devemos considerar e colocar em discussão para fazer um contraponto com aqueles discursos midiáticos do perigoso.
As crianças não querem sair desse lugar em que estão. Eu, além de fazer o trabalho em campo, fiz muitas entrevistas, e a verdade é que as crianças não querem sair. As crianças querem que este lugar tenha melhores condições, querem ter água limpa e querem ter luz, querem ter uma melhor cozinha e querem ter mais espaço. A reclamação principal das crianças com as quais trabalhei é ter mais espaço para brincar porque sabem que há pouco espaço, mas eles não querem sair da casa ocupada. Sua família é a organização. Temos que tirar das nossas cabeças a ideia da família nuclear: sua família é a organização, é o movimento social no qual se encontra. E seus adultos referentes são todos esses adultos referentes da ocupação.
Então, a ideia de sair de lá é a ideia de cortar um monte de vínculos que são fundamentais para suas vidas. Além de tudo o que Marcia disse – não quero repetir –, que existe a brincadeira, que eles aproveitam, tudo isso acontece e não pode ficar homogeneizado numa ideia do perigoso, mas tem me chamado muito a atenção isso, como eles não querem sair da ocupação. Para eles, é seu lar, e não somente seu lar no sentido das quatro paredes, mas seu lar no sentido dos vínculos que têm se gerado lá dentro, e que são vínculos de muitíssima reciprocidade e muita solidariedade, entre as crianças que habitam o espaço e também com os adultos.
Além disso, pensando por outra parte, quais infâncias não são perigosas? Quais espaços não são? Senão, questionarmos isto seria acreditar que as infâncias burguesas, ou nas classes altas, ou em outros contextos, ou em outros bairros, não são perigosas. Deveríamos também questionar o que é o não-perigoso: as crianças medicalizadas, as múltiplas problemáticas que atravessam as infâncias com o consumo. Também fica idealizada a ideia de que há uma infância pobre que sofre e uma infância rica que está fora de perigo, enquanto que, se falamos em violência doméstica, é muito mais perigoso nos espaços de famílias nucleares que nos espaços das organizações. Nas organizações sociais, uma família que bate nos filhos, ou o homem bate na mulher, é facilmente identificável e o homem é expulso da casa. Há redes de solidariedade que também temos de visibilizar para poder perguntar-nos a que estamos nos referindo com o perigo.
1 – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
2 – Sociólogo e antropólogo francês.
3 – Socióloga holandesa.
4 – Escritor e teórico Camaronês.